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Refazendo a rota do Expresso do Oriente

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The New York Times

Versão contemporânea da viagem de Poirot exige tomar sete trens e atravessar nove países em menos de uma semana

Durante uma das últimas semanas da alta temporada de verão, no ano passado, me vi batendo papo com uma mochileira norte-americana na principal estação de trem de Milão. Aos 18 anos, estava viajando pela Europa pela primeira vez e o itinerário que escolheu lembrou o da minha aventura, há uns quinze anos: Amsterdã, Berlim, Viena, Veneza, Madri. O ponto oriental mais distante a que cheguei daquela vez foi Budapeste, na Hungria, mas desde então sempre acalentei esperanças de um dia poder fazer uma das rotas mais fantásticas já criadas para aquelas paragens: a do Expresso do Oriente.

Londres foi o ponto de partida para a viagem de seis dias que replica o antigo trajeto do Expresso do Oriente

Londres foi o ponto de partida para a viagem de seis dias que replica o antigo trajeto do Expresso do Oriente

Foto: Sellar Property Group

A primeira parada do jornalista foi Paris. A maioria das passagens teve que ser comprada separadamente

A primeira parada do jornalista foi Paris. A maioria das passagens teve que ser comprada separadamente

Foto: Getty Images

O trecho entre Paris e Munique é feito por TGV, saindo da Gare de l'Est

O trecho entre Paris e Munique é feito por TGV, saindo da Gare de l'Est

Foto: Reuters

O segundo trecho mais longo da viagem leva a Zagreb, na Croácia

O segundo trecho mais longo da viagem leva a Zagreb, na Croácia

Foto: Wikimedia Commons / Dinamostar

A catedral de Saint Sava, em Belgrado, pode fazer parte do roteiro de descobertas na viagem de 3.220 km de trem

A catedral de Saint Sava, em Belgrado, pode fazer parte do roteiro de descobertas na viagem de 3.220 km de trem

Foto: Reuters

O trecho entre Belgrado e Sófia, capital  da Bulgária foi feito numa lentidão tamanha que resultou em atraso de duas horas do trem

O trecho entre Belgrado e Sófia, capital da Bulgária foi feito numa lentidão tamanha que resultou em atraso de duas horas do trem

Foto: Wikimedia Commons / ArielR

A rota original do Expresso do Oriente incluía travessia para o lado turco de Istambul; mas agora é preciso atravessar o túnel do Bósforo de ônibus

A rota original do Expresso do Oriente incluía travessia para o lado turco de Istambul; mas agora é preciso atravessar o túnel do Bósforo de ônibus

Foto: Reprodução

Budapeste foi uma das cidades que saíram da rota do luxuoso trem há anos

Budapeste foi uma das cidades que saíram da rota do luxuoso trem há anos

Foto: Getty Images

Assim como Milão, na Itália

Assim como Milão, na Itália

Foto: New York Times

Apenas o trecho entre Estrasburgo e Viena, isto é, cerca de um quarto da distância original, foi mantida por um tempo

Apenas o trecho entre Estrasburgo e Viena, isto é, cerca de um quarto da distância original, foi mantida por um tempo

Foto: PKing Design

O nome magnífico, porém, se aposentou em 2009, depois de aparecer ininterruptamente nos horários de estações europeias desde 1883. O trajeto, que ficou famoso graças a Agatha Christie e o livro da série Hercule Poirot "Assassinato no Expresso do Oriente" ‒ o trecho impressionante de Calais a Paris, depois Dijon, Lausanne, Milão, Zagreb, Belgrado e Sófia antes de concluir a viagem em Istambul ‒ foi desativado em 1977, mas o nome foi preservado para um trecho pequeno entre Estrasburgo e Viena, isto é, apenas um quarto da distância original.No final do ano passado, decidi realizar a versão contemporânea da viagem de Poirot; para isso, teria que tomar no mínimo sete trens e atravessar nove países em menos de uma semana.

A maioria das passagens teve que ser comprada separadamente, sendo que algumas são entregues exclusivamente pelo correio ‒ e a da última fase só pode ser adquirida na Bulgária, com dinheiro vivo. Tive que me preparar comprando cinco moedas diferentes, além de muita comida. Há muito não existem os "melhores bocados" de Poirot e seus companheiros, o "delicado cream cheese" pós-jantar, nem os garçons prontos para servir água com gás ou suco de laranja fresco a qualquer hora à princesa exilada ou ao capitão de indústria norte-americano.

O que permanece é a oportunidade de ver a Europa como uma amplidão contínua e não uma sucessão de trechos truncados, geralmente feitos a bordo de uma companhia aérea promocional. Não sei por que, mas achei que esse panorama pudesse se estender diante dos meus olhos somente durante o dia ‒, mas o luxo de apreciar as paisagens bucólicas do interior só é possível durante um terço das 60 e poucas horas que levaria de Londres, onde estava, ao Bósforo.

O primeiro dos dois longos intervalos diurnos, de Paris a Munique, é feito por um TGV pintado em dois tons de lilás; o meu trem saiu da Gare de l'Est de manhã e só parou em Saarbrücken, pouco além da fronteira com a Alemanha. Todos os vagões têm uma tela para informar a velocidade e o progresso do percurso ‒ e avisar os passageiros de que logo estarão fora da França.

O segundo trecho feito à luz do sol, um dia depois, foi de Zagreb a Belgrado ‒ embora tenha sido difícil avaliar o cenário, quase o tempo todo bloqueado por outdoors gigantescos anunciando as melhorias de infraestrutura patrocinadas pela União Europeia. De qualquer forma, àquela altura o trem se movimentava com tamanha lentidão que era difícil ter qualquer noção de progresso da viagem.

A princípio fiquei meio decepcionado ao constatar que os trechos longos foram relegados ao período noturno, mas logo percebi que os trens noturnos ofereciam tantas ou mais aventuras do que os diurnos. O primeiro que peguei, por exemplo, o Lisinski de Munique a Zagreb, foi atravancado pelo delírio da Oktoberfest, com mulheres em roupas tradicionais trançando as pernas atrás da composição, arrastando homens, também fantasiados, atrás de si na plataforma da estação.

Passei a noite seguinte em uma cabine marrom-avermelhada meio embolorada, puída e espartana, no trecho de Belgrado a Sófia. Eu esperava ficar sozinho ‒ afinal, qualquer pessoa em juízo perfeito faria o percurso em metade do tempo, de carro ‒ mas não contava com a boa vontade dos mochileiros alemães que, em dez segundos, montaram ali um verdadeiro albergue. Os Bálcãs também marcaram presença ‒ um dançarino de hip-hop/codificador de Android sérvio e um advogado búlgaro que falava alemão ‒ com ambos trocando figurinhas sobre a guerra e a infância por trás da Cortina de Ferro entre muitas cervejas. Chegamos à capital búlgara com duas horas de atraso, tempo suficiente para irritar os alemães e divertir os eslavos.

Embarquei então no último vagão do percurso, uma cápsula pintada de branco onde se lia "Istambul". Nosso camareiro era o Salim, um turco bem apessoado de uniforme verde-esmeralda. Quando passei por sua cabine, curioso por causa da música folk da Anatólia (no último volume), ele fumava um cigarro de cravo e servia chá a um bósnio com um samovar pesado de bronze equilibrado perigosamente sobre um fogão de acampamento ‒ concessões ousadas ao glamour que o trem já teve, sem dúvida. Um exemplo inspirador.

Em companhia do uísque que comprei com meus últimos levs búlgaros, nos acomodamos no compartimento: um casal de jovens australianos que tinham ouvido falar que chegaríamos com cinco horas de atraso; um parisiense que inexplicavelmente dividia seu tempo entre Seul e Bishkek, no Quirguistão, e falava em percorrer a pé a rodovia que atravessa a cordilheira Caracórum e um suíço que tinha saído da Turquia por causa de alguma confusão qualquer e agora estava de volta com um passaporte novo.

Para quem seguia para Baku, Teerã e outras cidades orientais, a rota do Expresso do Oriente original incluía a travessia para o lado turco de Istambul; a nossa teve uma interrupção semelhante. Em Cerkezkoy, a quase 100 km a oeste da capital turca, fomos levados a um ônibus na escuridão do pré-amanhecer ‒ isso porque a construção do túnel do Bósforo impede que os trens de longa distância cheguem à cidade. Os passageiros do trem todo encheram apenas meio ônibus e, quando os primeiros tons de laranja começavam a pintar o céu, saímos do estacionamento, finalmente a uma velocidade decente. Os minaretes começaram a surgir contra o horizonte que clareava.

Pode parecer infame terminar uma viagem de trem de 3.220 km parado no trânsito da hora do rush, mas, por incrível que pareça, alguém o incluiu nos cálculos dos horários do trem porque passamos ao lado do cais da balsa do Chifre Dourado, a caminho do estacionamento do Terminal Sirkeci, exatamente às 7h55. Depois de seis dias de viagem, eu estava apenas cinco minutos atrasado.


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